segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

O mal.

“É bem certo que a violência é aquilo que não fala” (Deleuze, 1973)
A resistência ao luto, acrescida à presença de uma mãe ‘não falante’ no mundo interno da criança é sinal, é um sintoma e é marca de que está havendo problemas nos sistemas de elaboração dos sentimentos mais complexos ligados às emoções de perda e separação, tanto quanto em relação aos sistemas responsáveis pelo amor, pela ligação e pela dependência. O mal se aproxima e o simbolismo mitológico e onírico não digere as experiências emocionais brutas e as devolve ao real como se fossem ‘trecos dessignificados’. O despreparo, a imaturidade e a inabilidade para lidar com elementos de digestão lenta, sem amparo dos mais velhos, levam o recém-nascido a regurgitar o próprio psiquismo na ilusão de poder devolver ao ambiente um produto que ele pensa ter sido obtido inadequada ou inadvertidamente. Alguém o fez comer o que ele não queria: foi assim no Paraíso de Adão e Eva, não? E lá já estava o mal.
Esse ato psíquico primitivo de expulsão, que devolve ao mundo o que não se faz psíquico sugere, para uma mente imatura, que o problema foi resolvido, e a técnica aplicada foi a de jogar fora a água do banho do bebê com ele dentro. Esse ato mental cria uma área imaginária onde parece ser possível a qualquer um dispensar-se das obrigações depressivas num estalo de dedos ou num piscar de olhos e agir como se tudo fosse "apenas" uma resposta "ingênua e espontânea". Se for correto afirmar que o nome próprio, vindo do outro, é aquilo que dá ao sujeito o direito a ter responsabilidade, uma vez que o submete, uma vez que o acusa e o culpa pelo mal cometido, poderia isto querer dizer que no período em que ainda não temos nosso nome, não teremos culpa, nem precisaremos responder por nada?
Como disse Pierre Gisel, no prefácio da publicação de uma conferência feita por Paul Ricoeur[1] na Faculdade de Teologia da Universidade de Lausanne em 1985:
..."o homem só é sujeito quando é chamado (denominado), só é sujeito quando é responsável." (Gisel, 1985)[2] Mesmo que a idéia de Gisel sobre o pensamento de Ricoeur, de que somente depois do nome é que se pode cometer o mal, seja tentadora, penso que a experiência de culpa, que ocorre nesse período onde o sujeito ainda não tem nome, é uma experiência muito mais violenta, uma vez que o castigo não é menor e a expectativa por ele esbarra mais no desejo de obtê-lo de forma violenta, que na fuga da própria punição. Se as perversões e a ignorância não representam o mal, quem mais o faria? Não há nada que chegue antes à nossas almas aflitas que não seja da ordem do mais simples, e o mal, certamente, é o mais simples.
O agir sem ser responsável, é um agir que se encontra fora do território humano. Mas o mal está dentro do território humano. Não há um sujeito possível sem que, internamente, ele possa responder pelo mal que faz.
Mas é necessário, por outro lado, que se compreenda que inúmeras vezes, porém, pode existir uma ação sem que haja (aja) um sujeito: os músculos e os ossos são senhores de tudo quando não há inteligência, ou lucidez para comandar uma ação.
A ausência de culpa, a infância e o mal são expressões que podem ser, por um momento, sinônimas, uma vez que são o reflexo da ausência de sujeito, uma vez que se pode alegar que a casa estava vazia.
O assassino pode dizer-se infante, alegar-se criança demais para responder pelo que fez. Pode querer ser, perante a lei, inimputável ao matar sua mãe - jogando-a na casa do vizinho que possuía violentos Pit Bulls - para que ela fosse eventualmente morta por eles. Esses cães deveriam executar, pelo filho infantil, o ato pelo qual ele mesmo não gostaria de responder. Seria isto o mal?
Ou o mal realmente seria nós sermos todos suficientemente infantis e precisarmos que alguém na sociedade execute o mal por nós, para que nossas mãos não fiquem sujas do sangue daqueles a quem odiamos e queremos mortos. O ato sem ninguém, o ato frio e ausente de si mesmo, sem essência ou presença é um ato de um ente que se localiza num tempo que precede o tempo da responsabilidade, porém não precede a culpa, não precede as angústias persecutórias.
Só o vazio depressivo, e a dor desse vazio, podem dar consistência ao amor pelo outro uma vez que tomam a esse outro como semelhante em dor, semelhante na paixão e no padecer. O saber que o outro sofre a partir do seu próprio sofrer confere solidariedade àquele que também sabe o que é o sofrer. É no assoalho onde há dor que o adubo da tristeza fertiliza o crescimento de algo que, mesmo sem sabe-lo por completo, chamamos de humanidade. Isto nos devolve a fibra para lutarmos contra o mal.
“A quem o mal foi feito o mal fará em retribuição”.
W. H. Auden, o poeta, já o havia escrito, e com isto também havia indicado que todos somos capazes de alcançar e praticar o mal. Está em nosso sangue. Hanna Arendt, já havia esclarecido quando falou das dimensões insuportáveis da bondade e da pena, deixando clara a brutalidade do próprio homem contra ele mesmo, inclusive quando ele busca praticar o bem. Brodsky, em seu “Discurso Inaugural” (1983, Cia. das Letras 1994) proferido aos alunos do William Colege, chama a atenção para os perigos do ‘oferecer a outra face’ sem se preparar para uma luta encarniçada de vida ou morte.
O que sabemos, nós que estudamos a psicanálise, é que a brutalidade proíbe o crescimento ético. A brutalidade proíbe o aprofundamento na alma humana, impossibilita-o. A brutalidade não permite sentir, perceber, compartilhar, cooperar. A brutalidade estanca o pensar, fazendo morta a nossa alma. Para reviver, ela precisa ser capaz de responder por si e por seus atos, sentir o peso de sua culpa e transformá-la em responsabilidade. O peso e o pesar são o nosso centro de gravidade, o nosso apoio, a nossa certidão.
Aquele que é capaz de dizer: "Eis-me aqui." Restabelece o ciclo da vida, uma vez que está disposto a tomar para si a responsabilidade pelo que fez, sem procurar por ninguém nas cercanias para acusar. Creio que este é o ângulo epistêmico que está perdido no trabalho freudiano. Ele aborda certas ações do bebê humano sem que, no entanto, faça a exigência da necessária presença (no psíquico desse ser) de um sujeito responsável que pode responder pelo que faz.
Freud, por essa via, executa o banimento do mal do inconsciente colocando-o nas mãos da sexualidade e, com esse banimento exclui também a responsabilidade como uma experiência que tem registro atávico, e que pode ter sido recebida por herança, tanto quanto o mal o foi, no longo caminho trilhado pela evolução de toda humanidade, mas que já está - desde cedo - em nossos bancos de memória ética. Dessa forma, infelizmente, Freud retira da esfera inconsciente o território do mal e da crueldade, tanto quanto retira a morte.
Excluindo o mal da infância, não faz mais que lançar a psicose para um outro contexto distante daquele que ele define como “primário”. Poucos se dão conta desse problema, e poucos compreendem que Klein vem ocupar esse nicho teórico. É por isso que Klein tem que criar um ângulo particular para dizer de um espaço para a ‘não culpa’, uma área mais psicótica ainda, fazendo da cidadela esquizo-paranóide a nova versão que afirma narcisismo ser da mesma ordem da insanidade. Segundo minha compreensão, uma ação que é feita antes do sujeito humano poder ter lugar para ‘ser ele próprio’ no interior do seu espaço mental é um tipo de ação que é impulsiva, é possessão e pura ativação do ato, do instintivo.
Ato sem pensador, assim como o ato sem a presença de um eu, não é um gesto cogitado e preparado no fogão do sonhar, cuidado pela duração do tempo. Ato direto é ato sem alma, coisa do demônio, é coisa do mal. Assim, perdido num emaranhado de possíveis ações não cometidas, mas ‘realizadas na mente’ pela utilização de fantasias violentas, o sujeito sem nome se acusa de todas as dores geradas no mundo e pelas quais não sabe como responder de tão pequeno que é, e de todos os erros cometidos por ele e pelos homens que estiveram em algum momento em transe, possuídos por um desejo incontrolável de agir e cometeram um ato impensado! A culpa onipotente enfatiza que o sujeito necessita acusar-se, necessita punir-se e, para evitar um colapso maior, é comum que, quando assustado, ele tente localizar em algo ou alguém a origem e a causa do mal que lhe acontece ou do mal que ele produz, eliminado a fonte. O resultado disso é confundir pensamento com ação, causa com culpa, e também a onipotência do psíquico com uma ação executada no real. A ação fica sobrecarregada de significados pecaminosos e o sujeito inominado se perde no mundo idealizado da perfeição superegóica, sendo condenado à punição que ele vive como se dela necessitasse.
__________________

O mal revela mais uma vez nosso fracasso diante de nossa insanidade. Com seus componentes de estresse e de produção ativa de ódio e angústias sem nome, o mal destrói a relação com o mundo, com o outro e com o amor.
Uma ação deixa de ser veículo do conhecimento e degrada-se em pura descarga, transformando-se em passagem ao ato. O desespero e a pressa nos tira o chão. Evacuamos tensão, e não temos controle sobre esse movimento. A principal finalidade desse processo é a de livrar o psiquismo de um acúmulo de tensão insuportável, porque não quer ou não pode pensar naquilo que no momento exige esforço e pensamento. É uma defesa primária, como uma válvula que esvazia o mundo interno de seu conteúdo e impede o esforço necessário a qualquer elaboração, deixando passar direto tudo o que recebeu, sem nenhuma digestão, sem nenhum contato com o que foi ingerido, como se nada tivesse sido tocado ou sofrido a influência por ter estado no interior de alguém. Esse vazio causa o desastre, e, como uma flor mortal se abre todo para o mal.
É nesse movimento de não contato - onde prevalece o alheamento - é o que recoloca o mal no mundo. Ele vem como um sonambulismo, uma espécie de embriagues, e se desdobra em outros procedimentos, como se fosse uma serpente, até chegar à evacuação dos sentidos e à expulsão das emoções.
Com isto mergulha-se no psiquismo primitivo e automático da autoconservação e se pode evitar um tipo de angústia gerada pelo sentimento de culpa e de vazio provocado pela expulsão mental das coisas de valor que havia nesse interior. Por sua vez este ato defensivo impede que o luto tente dar conta de digerir a dor que o psíquico gera, e as forças nefastas agora esperam ávidas por alimento e acontecimento.
A ‘turbulência emocional’[3] leva ao suicídio real ou psíquico ou ainda a um tipo de tristeza que é amarga, que é rançosa, e que extrai dos outros o que eles têm de pior.Na clínica a paciência é necessária e a coragem também para enfrentarmos pacientes com esses traços. Mas o golpe de cajado, bem dado, no centro da testa, no momento certo, seguramente os fará melhores. É necessário termos estômago para ouvir, nas milhares de vozes que falam na mente de um homem em delírio melancólico o desejo secreto de urdir, pela perda dos objetos, a convicção de não ter que retribuir amor a quem se pede. O mal está aí, ao alcance de nossas mãos. Infelizmente, mesmo tratados, esses homens sem mente, logo se cansam e, lançam mão do pior: a humilhação; isto é lançam mão da grande defesa contra a presença do outro.



Dr. Tomazelli



[1] “A vontade humana não é nunca de início neutra, sem história, sem hábitos, sem natureza adquirida. De fato e originalmente. Por quê? É aí que tudo se liga ou tudo se dissolve: pois o homem só é sujeito quando é chamado (denominado); só é sujeito quando responsável. Perante uma lei, diz Kant, aquela que nos faz notadamente pensar que nos pensamos diferentes da natureza pura. Que somos marca e fato de diferença. De dissidência, singulares. Logo, ser chamando é ser eleito. É voltar para Deus. E porque se trata aqui de história concreta, particular, de um acerta forma contingente e, ao mesmo tempo, sem paradoxo, originário ou de lugar constitutivo. Lugar de surgimento, somente o mito e a religião permitem afirmá-lo. Meditar sobre o mal é, para Ricouer e toda a tradição que ele retoma, afirmar uma falha ao coração de todo o enclausuramento do ser total e, radicalmente, apoiar-se nesta ruptura para ser. Neste sentido, o mal (tal como Deus) não é intemporal; acontece, de ‘uma vez por todas’, perante aquilo a que minha liberdade efetiva é somada, chamada e provocada a existir.” (Ricoueur, Paul O mal: um desafio à filosofia e à teologia. Tradução de Maria da Piedade Eça de Almeida. Campinas, SP, Papirus, 1988) [2]Pierre Gisel O mal: um desafio à filosofia e à teologia. Tradução de Maria da Piedade Eça de Almeida. Campinas, SP, Papirus, 1988). Prefácio [3] Bion, Wilfred Revista Brasileira de Psicanálise, v. XXI, número 1, ano 1987, p. 121






Nenhum comentário: