sábado, 24 de outubro de 2009

Construção do heterônimo - clínica

Em meus seminários clínicos tenho uma preocupação especifica com a re-humanização do analista e com des-racionalização da psicanálise e do raciocínio psicanalítico, convidando meus alunos/aprendizes para um tipo de pensar mais ‘despretensioso’, que, no entanto, me parece mais potente para o tipo de trabalho que desenvolvemos no interior das sessões.
Não há uma linha que me oriente propriamente, na verdade é um convite ao livre pensar e à liberdade de agir sem exceder os limites de um trabalho. Além disto, é um incentivo à formação de um tipo de atitude, que me parece dar uma consistência melhor ao ‘ato analítico’, de tal forma que ele ganhe em potência e precisão, com redução vantajosa da paranoização que a “neutralidade” introduz no setting.
Se eu formo, ou melhor, se eu ajudo a dar forma ao psicanalista que há em cada um, é porque acredito ser necessário exercitar-se para “sermos nós mesmos” que resulta em excelência e desenvolvimento de um estilo pessoal, e não em um aprendizado burocrático de uma tarefa. Parece-me importantíssimo que o psicanalista não seja feito pela via da pantomima teatral, auto-construindo uma máscara psicanalítica. Parece-me central, isto sim, que na verdade ele descubra em si um heterônimo. Isto é: o psicanalista aprendiz deve procurar desenvolver um heterônimo. Deve ser capaz de desenvolver um outro eu que seja ele-mesmo, para além de si ainda sendo ele. E isto, tenho certeza, não se faz por esforço, mas sim por entrega.
Emir Tomazelli

2 comentários:

Anônimo disse...

Totalmente de acordo!
Por mais que 'escolas de formação' tentem ao máximo evitar essa linha de montagem, no fundo - bem no fundo - não passam de escolas. Umas mais que as outras.
Devia ser formação em ser humano.
Abraço

Anônimo disse...

Olá colegas de seminário clínico... olá Emir...
O que eu ando pensando num domingo de manhã...

Algumas leituras depois, algumas conversas depois, começa a fazer sentido pra mim este texto, proposto no início dos nossos encontros.

Na Escola onde trabalho, numa das propostas de atividades com as crianças, estamos organizando um sarau de poesias. Temos um repertório selecionado para partilhar com as elas, tanto ampliando o que conhecem do universo poético (para algumas introduzindo-as no mundo da poesia), como por questões metodológicas da alfabetização. Na fase de aprendizagem da leitura e da escrita em que se encontram é importante que elas tenham muitos textos de memória para poder reproduzi-los num exercício de ajuste do falado ao escrito, para que se concentrem no "como escrever - quais letras" e não no "o quê escrever"... mas deixarei as questões da metodologia da alfabetização de lado.

O fato é que, por conta desse momento do currículo da escola em que atuo, voltei a ler alguns dos meus poemas favoritos... são vários... dentre eles, Fernando Pessoa. Leio, releio, me emociono, repito para mim mesma, distribuo poemas que ocupam minha alma por uns dias...

De repente, a notícia: F. Pessoa é uma Pessoa a mais dentre as que eu já "conhecia". Onde foi q eu perdi essa informação? Esta seria sempre a minha pré-ocupação: revisitar minhas aulas de literatura lá nos idos do século passado, quando eu era uma colegial... impossível lembrar! Revirar alguns dos livros que tenho do autor, tentando achar o que deixei de ler... impossível, porque dentre os meus muitos livros (de Pessoa e outros e outros) acho que mais deixei de ler - ou não li ainda - do que realmente tenha lido!!

Não importa o que eu não sabia, nem o porquê de não saber... importa o que eu sei agora! Acho que será sempre assim conosco, nessa jornada da formação psicanalítica que só tem começo... ... ... Tenho aflição se não consigo entender, se não sei, se nunca ouvi falar sobre... Tantas vezes vou me deparar apenas com todas as incertezas que moram em mim, que se reúnem ao meu redor e que constituem o mundo em que eu vivo, os caminhos que eu percorro e o que eu escolhi trilhar agora, buscando nova formação.

Formação como pessoa também...

Está lá, no finalzinho do texto do Emir "(...) o psicanalista aprendiz deve procurar desenvolver um heterônimo. Deve ser capaz de desenvolver um outro eu que seja ele-mesmo, para além de si ainda sendo ele. E isto, tenho certeza, não se faz por esforço, mas sim por entrega." Sensacional!! Fácil? Acho que ninguém está mesmo esperando isso...

Está lá, num dos meus preferidos do Pessoa, que se não me engano é Alberto Caeiro...

“Não basta abrir a janela
para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há idéias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.”

Cintia F Simão