Se 'an-orexia', é ausência de desejo, e desejo envolve ter algum prazer... então, me pergunto, de que prazer se fala?
Prazer oral? Calma oral? Alívo oral? Descanso?
Do que isto trata? Que prazer é este?
Prazer que envolve a construção psíquica da boca como um órgão de prazer; ou prazer que dissolve a boca fazendo-a desaparecer?
Qual será o destino do órgão depois de ungido por tal princípio? sua abertura ou seu fechamento completo.
Se n'O Grito' de Edvard Munch, fica claro o efeito daquilo que se expele pela boca, na anorexia, evidencia-se o que ela pode guardar, o que ela pode sepultar.
O desabamento das portas da cidade, o soterramento da entrada e do acesso ao dentro indica colapso e tentativa desesperada de livrar-se do exterior anulando o espaço interno. Não é improvável que a humanidade, em algum momento de sua evolução, tenha considerado seriamente ver-se livre da boca. Ela já foi em algum ponto de sua evolução uma ameaça.
O prazer oral é brutal e pode ser levado às últimas conseqüências transformando-se em encarceramento da boca[1]. Boca lacrada, boca sem entrada. Paradoxo?
A etimologia aponta para um problema no desejo. ‘Orexis’ em grego é desejo. A an-orexis é uma ausência de desejo.
Prefiro seguir outra pista, a da sonoridade, que aponta para a ausência de boca: 'an-oros'. Ausência de orifícios. Ausência de cavidade oral.
Minha impressão é de que é o orifício oral o que está em questão, e não o desejo! O drama aqui se estabelece contra a existência do espaço.
2)
Vejamos as palavras:
oral:
adjetivo de dois gêneros
1 relativo à boca; bucal
Ex.: higiene o.
2 que se produz na boca
Ex.: som o.
2.1 Rubrica: fonética.
em cuja articulação o ar expirado passa apenas pelo canal bucal (diz-se de fonema, som etc.)
Obs.: p.opos. a nasal
Ex.: consoante o.
3 que se propaga, se transmite pela boca
Ex.: contágio o.
4 que não é ou não está escrito; dito, realizado ou expresso de viva voz; verbal
Obs.: p.opos. a escrito
Ex.:
5 que se transmite de boca em boca; verbal
Obs.: p.opos. a escrito
Ex.: tradições o.
substantivo feminino
6 prova ou conjunto de provas realizadas oralmente, de viva voz, ger. em complementação à parte escrita
substantivo masculino
Diacronismo: antigo.
7 véu fino outrora us. por senhoras recatadas para velar o rosto
etimologia:
rad. do lat. os,oris 'boca; linguagem, língua, idioma; rosto, fisionomia; abertura, orifício' + -al; ver 2or(i/o)-
substantivo feminino
1 desejo, vontade de comer; apetite
1.1 Rubrica: medicina.
necessidade ou desejo imperioso e contínuo de ingerir alimentos
anorexia:
a. mental ou nervosa
Rubrica: psicopatologia.
quadro mórbido em que o indivíduo diminui a quantidade de alimentos ingeridos, freq. eliminando aqueles ricos em calorias, por meio de uma dieta rígida auto-imposta, que alterna com crises de bulimia, vômitos ou tomada de purgativos
anoréxico:
adjetivo
relativo a anorexia; anoréctico, anorético
etimologia:
anorexia + –ico; cp. anoréctico e anorético; ver a(n)- e –orexia
orexígeno:
adjetivo e substantivo masculino
Rubrica: farmacologia.
que ou o que estimula o apetite (diz-se de substância ou droga).
3)
Primeiro assentamento:
“Pois o que se encontra em causa aqui – como se vê nas anorexias depressivas-, é a corporeidade mortal do outro, que por sua presença real e manifesta (por vezes excessiva) constitui-se em obstáculo contra o dom de sua substância. Estamos pensando nas anorexias, pois elas possuem o ‘método’, tão fisicamente psíquico, de se alimentar em silencio e sem que o outro saiba, da substância incorporal de seu corpo. A alteridade é causa do sofrimento da existência psíquica, e é essa alteridade promissora que se encontra na fonte da verdadeira dependência e, portanto, da alienação. Dissolver essa alteridade consiste em roubar-lhe o efeito benéfico de sua presença negando seu poder de curar em pessoa.” (p. 117; Fedida, 2002[2])
4)
Segundo assentamento:
“No entanto, no campo da clínica da psicanálise, coube a Harold Searles em um de seus mais instigantes trabalhos (Searles, 1973) nos propor a hipótese ousada de que ‘entre as forças inatas mais poderosas que empurram o homem na direção de seus semelhantes, há desde os primeiros anos e mesmo desde os primeiros meses de vida, a tendência essencialmente psicoterapêutica. Se pensarmos em termos winnicottianos, seria como um concern pré-original, uma espécie de preocupação com o outro anterior à própria constituição do aparelho mental do indivíduo, anterior, portanto, à configuração do próprio.Recordemos que Levinas nos remete ao âmbito do pré-original como sendo o do que expõe uma subjetividade a outra antes mesmo de haver um sujeito, antes mesmo de que se tenha constituído um Eu, com seus atos, suas intenções e suas defesas. O pré-original é a exposição traumática à alteridade, um começo de mim antes de Eu ter começado, e essa nos parece ser uma dimensão decisiva do que estamos denominando de contratransferência primordial.Como se verá adiante, não é necessário nem conveniente interpretar esses cuidados com o outro como emanando de alguma boa vontade intrínseca ao ser humano. Não se trata de samaritanismo, mas de sobrevivência em condições de desamparo em que a dependência em relação ao ambiente é extrema e em que a manutenção dos ‘objetos’ em bom estado e em bom funcionamento é essencial ao indivíduo.
Para Searles, os abusos pelos pais dessa função contratransferencial primária dos filhos e, principalmente, a incapacidade dos pais reconhecerem, admitirem e aceitarem a condição de serem ‘cuidados por seus bebês – o que pode incluir tanto educação como a cura de males físicos e mentais – figuram entre as mais importantes causas dos adoecimentos psíquicos. Há pais e mães, aliás, que reúnem os dois aspectos: exigem tudo dos filhos em, termos de cuidados, mesmo quando são bebês, mas se mostram não educáveis e incuráveis. (...)
No seu lugar as ‘tendências psicoterapêuticas’ precoces ou não operariam (interditadas pelo ódio ou pela inveja), ou operariam muito intensificadas, assumindo a forma de reparações maníacas, pela via das formações reativas. Nos dois casos estariam comprometendo bastante a possibilidade do paciente, ele mesmo, ser cuidado pelo analista, que por seu turno, se sentirá ameaçado em sua posição.” (p. 130; Figueiredo,2003)[3]
5)
daqui em diante o leitor deve ir sozinho e ver onde chega...
Dr. Tomazelli
[1] François Rabelais, em Gargântua e Pantagruel[1] ("Os horríveis e apavorantes feitos e proezas do mui renomado Pantagruel, rei dos dipsodos, filho do grande gigante Gargântua”)
[2] Fédida, Pierre
Dos benefícios da depressão: elogio da psicoterapia. Tradução de Martha Gambini. – São Paulo: Escura, 2002.
[3] Figueiredo, Luís Cláudio
Psicanálise: elementos para a clínica contemporânea. São Paulo: Escuta, 2003
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